quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Ao cair da noite na cidade

Era uma fria noite de inverno e Valérie estava na sacada de seu apartamento no sul do Brasil observando a chuva que caía. Na sua cabeça pensamentos mil acerca das coisas do mundo e de tudo aquilo que a incomodava. Era uma noite de sábado e não havia muito o que fazer na cidade pois estava no meio de um feriado prolongado e seus amigos estavam, a maioria viajando.

Viagens, ela gostava muito de viagens. Mas de um tempo para cá passou a cansar dessa rotina de estar toda hora em um lugar diferente, longe de casa e de suas coisas. Acaba não tendo vínculos com os locais onde estava e seus amigos acabavam se resumindo aqueles que tinham acesso a rede mundial de computadores e lhe escreviam de vez em quando para saber como estava ou para contar alguma novidade.

Já tinha lido muito sobre esse novo conceito de modernidade líquida e fluída e tinha certeza que não era isso que queria para sua vida. Valérie queria fixar raízes para além das conquistas materiais que obtivera até então. Queria viver um grande amor, estar apaixonada e sonhar com um futuro que não fosse somente aquele, de ser uma profissional da web bem sucedida. Queria ser que nem as pessoas comuns e no fim de semana estar em casa com seu amor vendo um filme antigo e sentindo o calor de um abraço carinhoso onde pudesse se aconchegar e livrar-se da frieza nos bits e bites que eram o quotidiano de seu ofício.

Na sala seu laptop aberto no último projeto que estava trabalhando e que dentro de duas semanas a levaria a Milão para apresentar os resultados na sede da empresa multinacional que a havia contratado. Gostava muito da Itália, já estivera lá várias vezes, conhecia Roma, Pádova e Veneza e sonhava com um retorno diferente a estas cidades. Queria lá estar e viver dias inesquecíveis com um homem que lhe fizesse feliz, que lhe fizesse se sentir aquecida e longe do mundo das máquinas e do corre-corre dos projetos que sempre estava executando. Queria amar e sentir-se amada.

E aí estava Valérie, chegando aos trinta anos de idade, bem sucedida profissionalmente, mas com muitos anseios, sonhos e desejos em aberto, olhando a chuva que caía na cidade de Porto Alegre pela sacada de seu apartamento próximo ao centro da cidade. Na rua, pessoas que iam e vinham numa dança caótica de carros e guarda-chuvas que buscavam domicílio entre seus entes amados, que tinham alguém em sua casa esperando-os. Mas Valérie, não. Já estava em casa e a única coisa que a esperava era a fria tela de seu computador para que terminasse o projeto que estava em aberto.

Estava cansada do silêncio mortal que tomava conta do apartamento. Foi até a sala, passou por seu laptop, pegou o Ipod que estava sobre a estante e conectou ao aparelho de som. Ouvi-se um breve clique do reconhecimento da conexão e passou a navegar pelas cerca de oito mil músicas que povoavam a gigantesca memória flash do dispositivo até encontrar o álbum que queria, deu um play pegou o maço de Marlboro Light e voltou a sacada onde, agora, sentada em cadeira tragava lentamente a nicotina para dentro de seus pulmões, sentindo-a tomar posse de seu corpo, dando-lhe uma breve sensação de relaxamento.

A música entrava suave por seus ouvidos e fazia-a viajar em suas lembranças. O álbum escolhido não ao acaso levava-a a regressar a sua última estadia em Montevidéu quando conhecera uma casal de psicólogos que lhe apresentara as musicas de um cantor popular daquelas bandas do Rio da Prata. Seu nome: Eduardo Darnauchans. A música: Cápsulas. Era como dizia a música que ela se sentia naquele momento quando estivera na capital uruguaia, pois, este havia sido um momento difícil de sua vida, onde, pela primeira vez havia ficado cerca de quatro meses longe de seu apartamento, de suas coisas, das pessoas que gostava.

Em sua cabeça entravam os versos de Darno a lhe dizer que: El pobre Juan de Dios tras de los extasis del amor de Aniceta fue infeliz y pasó tres meses de amarguras graves y tras lento sufrir se curó con prosac y con las cápsulas de lexotanil. E que: Enamorado luego de la histérica Luisa una rubia muy sentimental se enflaqueció se fue poniendo tísico y al año y medio o más se curó con el Viagra y con las cápsulas de eter de clertal. Mas que por fim: Desencantado luego de la vida, filósofo sutil a Leopardi leyó y a Shoppenhauer y en un rato de speed se curó para siempre con las cápsulas de plomo de un fusil.

E pensando na música revivia o isolamento daqueles dias frios no exterior quando estava a desenvolver um grande projeto para uma cooperativa de leite da cidade. Os dias e as noites eram frias e as ruas estavam sempre recobertas pelas folhas dos plátanos que povoam a cidade. Prédios antigos e cinzentos de décadas passadas povoam a cidade dando a sensação te estarmos em outro tempo que não o presente.

Mas esse tempo fora do Brasil foi bom para me (re)conhecer e saber as coisas que realmente me incomodam. Nas noites frias uruguaias aprendi a novamente olhar para dentro de mim mesma e com isso aprender a lidar com criaturas que criei, com temores que tenho. Sou parte de uma sociedade esquizofrênica e individualista que se constrói sobre relações superficiais e tênues. Não conhecemos muito dos outros. Só sabemos destes o essencial. Essência que muitas vezes perdemos nos acórdãos peremptórios de nossa vida.

Sozinha no seu apartamento, naquele momento, Valérie queria era encontrar sua própria essência, algo que as agruras da vida tinham tirado dela. O caminho era longo e sabia que não seria nada fácil sair de mais aquela crise. Ah essas crises... elas estavam se tornando cada vez mais freqüentes, mas já se conhecia um pouco mais e sabia, hoje, lidar melhor com isso.